Imagem de Robert Pastryk por Pixabay 

Assim como muitos de vocês eu também assisti ao recente filme “Coringa” e saí do cinema bastante impactada. A trajetória do personagem principal pode ser analisada por diversos ângulos, teorias e profundidades. O filme ativa em nós sentimentos intensos. A risada agoniada e engasgada do Coringa denuncia dores sufocadas e violências impossíveis de serem colocadas em palavras. Muitos aspectos abordados no filme perturbam, emocionam e incomodam. O sofrimento humano, a doença mental, os distúrbios sociais, a crueldade das pessoas, as desigualdades do mundo e a perturbadora delicadeza da infância.

Quando nos relacionamos com uma criança entramos em uma dimensão diferente. Uma dimensão tão singela e delicada que parece até meio mágica. Mas a condição inerente à infância é depender necessariamente de um adulto para sobreviver. Ajudar uma criança a sobreviver fisicamente não é difícil, mas para uma criança sobreviver emocionalmente a um contexto hostil é outra estória. Bem mais complexa. Bem mais cansativa e invisível. Crianças que definham por dentro por falta de amor, de atenção e de ambientes adequados usam a capa da invisibilidade.

Ao longo do filme eu fui ficando atordoada não somente com a violência brutal e explícita vivida pelo Coringa mas também pelo chorinho de criança pequena que escutei algumas vezes. Pensei que aquele som pudesse ser parte da estória daquele menino sofrido disfarçado de palhaço que estampava a tela do cinema. Porém, para a minha surpresa, não era isso. Aquele choro vinha de duas crianças de mais ou menos 2 e 3 anos que acompanhavam seus pais naquela sala de cinema onde projetava um dos filmes mais pesados que eu já vi. Uma estória que mostra ao mundo o cativeiro da infância e o aprisionamento psicológico ao qual muitas crianças são submetidas ao longo de anos.

O menino que se tornou um dos maiores vilões das estórias em quadrinhos representa estas crianças mantidas em cativeiro por adultos despreparados, desamparados e perdidos no limbo entre a infância e a vida adulta. O pequeno Arthur Fleck que se transformou no cruel Coringa viveu aprisionado a uma mãe mentalmente doente e a um sistema social precário, revelando as razões multifatoriais na formação de um criminoso. Assim como ele, inúmeras crianças encarceradas mundo afora sofrem em silêncio. Presas à falta de conhecimento dos adultos sobre o que é adequado para esta fase da vida, à arrogância de famílias que acreditam que simplesmente por se tornarem pais passam magicamente a entender sobre desenvolvimento infantil, às escolas que alfabetizam precocemente e roubam a possibilidade de brincar, ao excesso de tecnologias feitas para hipnotizar, ao abuso de remédios para adormecer a energia vital, à ignorância histórica de políticas públicas que não investem na primeira infância, ao olhar adulto de desejo ardente que violenta sem deixar marcas no corpo e à equivocada crença popular de que criança não sente muito sobre estas coisas da vida.

Em meio a tantas interpretações, críticas negativas e enaltecimentos possíveis para o filme “Coringa” o meu ponto aqui é convidar a todos a olhar para aquele “menino-vítima-palhaço-vilão” para enxergar a dura realidade de incontáveis meninas e meninos que neste exato momento estão presos sob o cativeiro invisível de muitos adultos. Somos todos profundamente afetados por esta situação. Uma sociedade que investe pouco na infância promove o sofrimento emocional em muitas famílias e gasta fortunas com altas taxas de criminalidade, com caríssimos tratamentos de doenças e com a falta de produtividade na vida adulta. Isso não é mimimi e, como no filme do Coringa, não tem graça para ninguém.

#SomosTodosAfetadosPorisso